quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Chuvas e pitangas

Para Amanda Sul

Há tempos a natureza parece querer chuva. Com pequenos intervalos de um tímido sol, o que tem permanecido são as águas a caírem do céu. Se no campo estivesse, eu sentiria o cheiro de terra molhada e veria todo o verde como num prolongado orvalhar. Não sendo assim, o que tenho avistado da janela é o cinza do céu, ao mesmo tempo em que tomo a precaução de sair sempre de sapato fechado, pois as águas de cima, ao aqui chegarem, se confundem com as do chão, de natureza e procedência duvidosa.

Não se trata isso de uma queixa. Convivo bem com a chuva. Apesar de me familiarizar um pouco mais com as mornas tardes de sol. E até mesmo com aquelas mais quentes: tenho as mãos e os pés frios e poderia muito bem ser uma lagarta refugiando-se no calor das pedras. Mas, de uns tempos para cá, arriscando-me em novas sensações, já sou capaz de sentir o poder apaziguador da brisa gelada e de silenciar-me com a introspecção trazida pelos céus cinzentos.

Nos dias de chuva, freio em mim a avidez: troco o desejo de ir à praia e de fazer passeios ao ar livre pela aceitação da vida como ela é. Aproveito também para treinar a confiança: dispo-me das lamentações por todas as possibilidades que não foram possíveis, largo o leme do navio que penso comandar e o deixo ao doce ou amargo sabor do vento e das correntes do grande mar. São os ciclos de chuva e sol que me ensinam a observar o que é passageiro, sem a nada me apegar.

Mas naquele dia a chuva apareceu dentro de mim. E quando me dei conta já haviam se formado em minha constelação raios e trovoadas. Se tivesse prestado atenção, teria ouvido ao longe o barulho do trovão se aproximando e a mudança na direção do vento. Mas não reparei e prossegui, na inconsciência de um pescador que avança com seu barco para o olho da tempestade. Lá estando, em pouco tempo, tudo já estava inundado. E o pescador, vendo tudo se transformar em ruínas, atordoado pela culpa, punia a si mesmo, severo e rígido, enquanto descontrolava-se ainda mais, de um lado para o outro, o leme da embarcação.

Lampejos de claridade proporcionaram momentos em que fui capaz de olhar o navegante, a embarcação e o iminente naufrágio. Vi as ondas de sentimentos movimentando o barco e o pescador. Vi sua resistência na defesa do barco. Olhei-o a chorar pitangas tão vermelhas que rubras se tornaram suas roupas, a embarcação e todo o mar em volta. Até que uma imensidão vermelha se formou ao redor.

E, diante de tanta adversidade, contemplei o seu olhar assustado e, em seguida, o seu corpo se cansando da luta e caindo de joelhos, esgotado e exausto. Nada mais podia contra todo aquele fogo. Entregue, tendo encostado a cabeça ao chão, não percebeu, então, quando o fogo queimou toda a embarcação. E o vermelho das chamas se transformou no vermelho da terra, no sangue da terra, no chão firme onde, depois de tudo, ele conseguiu finalmente pisar e caminhar.

No dia seguinte o céu acordou azul: recado do meu pescador mostrando como pode ter paz o coração e ser clara, a consciência.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Uma vez, na Montanha

Descobri a magia das flores, descobri a magia das palavras ditas com amor, descobri o elo que me une a todos os seres. Ouvi uma voz que contava histórias de fadas e de primavera, enquanto a lua amarela, por entre os galhos, confirmava: é este o caminho, minha filha. Senti o conforto de poder rir e soltar palavras que vêm de meu silêncio diante de pessoas cujo olhar parecia dizer: Fica à vontade, você pode ser você mesma. Olhei sem medo um sapo pela primeira vez; pela primeira vez olhei um sapo e ri, só porque se tratava de um sapo. E também chorei, senti uma tristeza no coração, que fez as lágrimas caírem sem que eu pudesse controlá-las. Mas foi graças ao sal que brotava da fonte de minhas emoções que pude sentir a força adocicada e acalentadora vinda da compaixão. A compaixão é uma senhora bem velhinha, parecida com Nanã, senhora da Terra, e sabe o que ela faz? Ela permite que cheguem a quem sofre, não julgamentos ou indiferença, mas olhares, toques e palavras carregadas de compreensão e carinho. É que ela trabalha junto com Oxum, senhora das águas doces, aquela que, logo depois de eu ter sentido os encantos da compaixão, me ensinou o mistério de olhar a vida com o olhar da beleza. Diante da alegação de minha pequenez, ela disse: põe flores em tudo que fizeres, acredita que tudo na sua vida é santo e belo; não acredita na motivação mesquinha de seus desejos; se tudo tem dois lados, deixa crescer e aparecer o motivo mais nobre para agires e viveres.
Estava assim, quando a segunda-feira me deu uma rasteira. Do alto da montanha ela quis me puxar pra baixo. Mostrou que eu ainda tinha pouco amor. Mostrou que, entre buzinas, fumaças, reuniões e burocracias, nem tudo é tão fácil. Mostrou minha impaciência. Mostrou meu desânimo. Mostrou minha confusão. Mostrou...
...E quase eu ia caindo. Mas ainda a tempo de perceber que as marcas dos meus aprendizados já estavam dentro de mim e que eu não ia deixar qualquer arranha-céu competir com essa Montanha tão grande cujo topo está justamente no meu coração.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Bem aqui

Quis ir direto para o infinito. Na ignorância de não perceber a distância entre o eu agora e o pretendido. Para seguir o infinito, fechei os olhos para o agora. Seguia a beleza do sol e das cores que meus olhos avistavam (sim, avistavam) e que existia. No entanto, não percebia os pisos falsos e as saliências que estavam no solo ao redor de mim e em mim. Caí tanto que tive que carregar minha esperança machucada no colo para que ela não definhasse de vez. Cheguei a acreditar no impossível. Tão difícil era chegar, que ficava mais tempo no chão do que na caminhada.
Precisei, gradativamente, desistir de olhar longe e para fora. Olhei para dentro. E pude sentir um coração vermelho, já ofegante de tanta procura. Não posso ir direto do ovo para o vôo. Consegui ver além do ovo e quase enlouqueci com o que pude ver. Mas, antes de qualquer coisa, preciso fortalecer meu bico e quebrar o ovo. Não posso ir mais rápido do que o tempo que se apresenta. Não posso negar o que tenho. O problema não está em ansiar por mais. Mas em esquecer o coração que ainda pulsa fraco e cansado e que está aqui, agora.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Decisão

Quedo-me abruptamente. Pensei tanto antes de fazer, na tentativa de acertar, que não fiz. Segui com a dúvida imobilizadora. Uma interrogação tão pesada quanto uma pedra de mármore, torta, por entre os átrios do coração. Com a respiração dificultada, formou-se também uma bola em minha garganta: palavra acumulada. Tive pesadelos por noites seguidas. Um dia acordei sem os dedos das mãos e dos pés e não pude mais sair da cama. Num sonho, consegui sentir minhas mãos balançarem ao vento. Eram penas que brotavam dos meus membros. Como fosse tão bom voar, permiti-me rodar e dar cambalhotas. Acordei sorrindo. Queria andar e não consegui. Mas voei. Sei que no peito ainda restam cascalhos de mármore. Mas a certeza só pode ser incompleta. E as palavras erram comigo no ar.

domingo, 22 de agosto de 2010

Cegueira

Sou como flor que brota nos cantos inesperados da calçada. Entre as pedras, num espaço ínfimo de terra, quase imperceptível. Na multidão de concreto, poucos imaginam que ali também habita terra fértil. E que, contra todas as conjecturas, com dificuldade, não posso negar, eu consigo emergir de dentro da semente caída do bico de um passarinho, deixando que venha ao mundo o broto de mim e que sejam vistos meu pequeno caule e minhas modestas folhas verdes. Cresço perto dos encanamentos de água, nas tumbas dos cemitérios, nas calçadas rachadas, nas esquinas dos muros da prisão e até mesmo no meio do asfalto. De repente, quando o vento vindo de longe refresca o meu verde com sua brisa, o sol aquece minhas folhagens e a chuva permite que escorram de mim todos os entraves, aparece, juntamente com os cantos dos passarinhos da manhã, a minha pequenina flor. Desabrocha de mim aquilo que eu não esperava que fosse eu mesma. Meu destino só não é tão repleto, quando desatento de tudo, um homem de sapatos não me percebe e destrói com suas solas o que eu tinha de mais precioso.

domingo, 25 de julho de 2010

Pedras

Seguiu o seu caminho e não olhou para traz. Até que certo dia, em meio a uma súbita ventania, o chapéu quase que lhe escapou da cabeça; e no afã de segurar o adereço, ao mesmo tempo em que equilibrava o corpo, que se balançava como as folhas das árvores no vendaval, o pescoço curvou-se para trás e os olhos, acompanhando o movimento, avistaram sem querer uma pedra esquecida. Os olhos viram, a memória se recordou e o coração sentiu. Ela não pode segurar as lágrimas, que desceram lentamente, ao mesmo tempo em que as lembranças tomavam forma na mente. Uma lágrima, mais tenaz do que as outras, desceu violentamente até o chão. Foi quando ela olhou para baixo e viu muitas pedras. As mãos tremiam indecisas. Ela tentava andar e não conseguia, diante da quantidade de pedras ao redor. Precisou, portanto, abaixar. Pegou pedra por pedra na mão, recordando cada uma, e foi ajeitando todas, abrindo a sua passagem. Depois, conseguiu finalmente andar e os raios de sol puderam enfim secar suas faces molhadas.

domingo, 25 de outubro de 2009

Horizontes

O leiteiro deixou o leite na porta. O carteiro passou de bicicleta. O marido abriu o jornal. A faca insistia na manteiga dura. No meio da mesa, dentro da garrafa de vidro, havia um barco à vela. E o vento estava favorável. A embarcação fluía. Toda a maresia do mar melava a pele queimada de sol a pino. Horizonte, horizonte, para onde vais? Um círculo de horizonte a envolvia. O barco seguia. Mas ela não chegava até detrás do horizonte. O horizonte é que os espremia, ela e a embarcação, gradativamente. O espaço ficava menor. O sol no meio do círculo.
Até que uma andorinha raspou-lhe a cabeça. Mas é verão:
- Mãe, depois você me ajuda a arrumar meu armário?

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Lume

Meia - noite. Hoje já é amanhã. Mas se fosse ontem também pouco importaria. Importa é que você aparece de novo. Hora da meia–noite. Se houvesse uma igreja aqui perto, os sinos tocariam. Ou lobisomens surgiriam. Ou Cinderelas cairiam. Ou, ou, ou. É de novo você. Por todas as meia–noites sempre permanece. Reaparece. Envelhece a dúvida. Rejuvenesce. Porque a noite já não é mais meia. Os lençóis já não são ásperos. Eu já não sou como antes da noite e meia em que meus olhos se fecharam para abrir cegos. Porque a noite é inteira. Tudo escuro. E eu andando no escuro sei andar. Quase não esbarro. E ando. Mais um pouco. Até que a luz invade minhas retinas e o escuro adquire matizes e eu, deslumbrada, com palavras, tento repetir o que sinto ao abraçar quem eu amo na noite escura.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Século vinte e um

A sala está vazia. No canto, restos de coloridas e murchas bolas de soprar enfeitam o chão. O aparelho de som toca qualquer música para ninguém. As luzes verdes e vermelhas ainda estão acesas. A menina acorda, com medo de escuro. Procura o tio, encarregado de cuidar da sobrinha. Mas encontra apenas o resto de festa, o fim de festa, a ausência de festa. A abstinência após o uso da droga, o silêncio após o barulho, a solidão após o amor. O tio está embriagado no sofá, a dormir tão apagado que sequer sonha. A menina sente mais medo então daquele escuro colorido, daquele escuro fingidor, que não é breu nem é claridade. E respira o ar da festa, com vestígios daquele tempo irrecuperável, que nem sabe qual foi, que nem sabe se alegre foi. Mas sente saudade mesmo assim, porque o que tem é apenas a dúvida entre o escuro e os restos do que não é seu. Parada na porta que liga o corredor à sala, ela sente um pouco mais de medo. Boceja e arrasta os pés para o quarto. Lá, busca uma solução e dorme de luz acesa.